terça-feira, 2 de dezembro de 2014


STJ determina que cônjuge casado em separação convencional pode ser herdeiro necessário

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve decisão que reconheceu a condição de herdeira necessária à viúva casada sob o regime de separação convencional de bens, mantendo a mulher no papel de inventariante. Para a Quarta Turma do STJ, é o artigo 1.829, inciso 1°, do Código Civil (CC) de 2002 que atribui esta condição. A viúva concorre com os descendentes do falecido, independentemente do período de duração do casamento, com o objetivo de lhe garantir o mínimo para sua sobrevivência.

Para o advogado Mário Luiz Delgado, presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), a decisão resgata a legalidade na jurisprudência do STJ na matéria referente à sucessão do cônjuge e à concorrência com os descendentes. Segundo Mário Delgado, o precedente anterior, que afastava da concorrência tanto o cônjuge casado sob o regime da separação obrigatória, como aquele casado sob o regime da separação convencional, era manifestamente contra legem, ou seja, contra os preceitos legais, uma vez que o Código Civil somente afastou da sucessão os casados sob o regime da separação obrigatória, que é completamente diferente da separação convencional. “Equiparar os dois regimes era fazer letra morta bibliotecas inteiras de Direito de Família. Além de afrontar o espírito do legislador de 2002, que foi o de assegurar a concorrência ao cônjuge desprovido de meação, hipótese em que se enquadram aqueles casados sob o regime da separação convencional”, argumenta.

De acordo com Mário Delgado, o regime de bens somente influi no direito de concorrência do cônjuge com os descendentes, e os demais direitos sucessórios do cônjuge não possuem qualquer vinculação com regime de bens. “Tanto é assim que, não havendo descendentes ou ascendentes, o cônjuge sobrevivente herdará a totalidade da herança, pouco importando o regime de bens, ocupando neste caso – e sozinho – a terceira classe dos sucessíveis. É o que estabelece o art. 1.838 do CC/2002. Na concorrência apenas com os ascendentes, a mesma coisa, ou seja, pouco importa o regime de bens do casamento”, completa.

Dados do caso - A única filha do homem falecido recorreu ao STJ contra decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), que reconheceu a viúva de seu pai como herdeira necessária. Ela argumentou que o cônjuge casado no regime de separação convencional de bens não é herdeiro necessário, e citou um precedente da própria Terceira Turma, julgado em 2009.

A recorrente apontou que na hipótese de concorrência com descendentes, deveria ser negado ao cônjuge sobrevivente casado sob o regime da separação convencional o direito à herança, pois ele não possui direito à meação e à concorrência sucessória. A filha do autor da herança defendeu a necessidade de manutenção do regime de bens estipulado, que obrigaria as partes tanto em vida como na morte.

O relator do recurso e ministro Villas BôasCueva destacou que o concurso hereditário na separação convencional se caracteriza como norma de ordem pública, sendo inexistente qualquer convenção contrária, pois esse regime não foi arrolado como exceção à regra da concorrência presente no artigo 1.829, inciso 1°, do CC. Villas BôasCueva explicou que o regime da separação convencional de bens não se confunde com o regime da separação legal ou obrigatória de bens, que é imposto de forma imperativa pela legislação (artigo 1.641 do CC), no qual efetivamente não há concorrência do cônjuge com o descendente.

O ministro ainda ressaltou que o novo Código Civil, ao ampliar os direitos do cônjuge sobrevivente, assegurou ao casado pela comunhão parcial cota na herança dos bens particulares, mesmo que sejam os únicos deixados pelo falecido, direito que deve ser conferido ao casado pela separação convencional, cujo patrimônio é composto somente por acervo particular. Villas BôasCueva relatou que no precedente invocado pela recorrente (REsp 992.749), afirmou-se que se um casamento for celebrado pelo regime da separação convencional, significa que o casal escolheu conjuntamente a separação do patrimônio, com isso não é permitido violentar a vontade do cônjuge após sua morte, concedendo a herança ao sobrevivente.

No entanto, o ministro disse que as hipóteses de exclusão da concorrência, tais como previstas pelo artigo 1.829, 1°, do CC, evidenciam a indisfarçável intenção do legislador de proteger o cônjuge sobrevivente. De acordo com ele, o intuito de plena comunhão de vida entre os cônjuges (artigo 1.511) motivou, incontestavelmente, o legislador a incluir o sobrevivente no rol dos herdeiros necessários, o que reflete conclusivo avanço do Código Civil de 2002 na área sucessória.

24/11/2014Fonte: Assessoria de comunicação do IBDFAM com informações do STJ


Um novo Direito de Família que se projeta
por Mário Luiz Delgado

Está reaberto o debate em torno do projeto de lei que institui o chamado “Estatuto das Famílias”, reapresentado perante o Senado Federal pela Senadora Lídice da Mata, agora aperfeiçoado e sob nova roupagem. Esse projeto (PLS nº 470/2013), como se sabe, desmembra do Código Civil o título que trata do Direito de Família e reestrutura toda a matéria, criando um estatuto autônomo.

Consentâneo com as realidades da vida, para as quais o Direito não pode fechar os olhos, o projeto busca soluções para conflitos e demandas familiares, a partir de novos valores jurídicos como o afeto, o cuidado, a solidariedade e a pluralidade. Optando pela celeridade, simplicidade, informalidade, fungibilidade e economia processual, a fim de proporcionar a efetiva concretização dos princípios constitucionais, abre as portas do sistema jurídico-positivo para as novas demandas surgidas nas relações de família, como é caso da paternidade socioafetiva, do abandono afetivo, da alienação parental e das famílias recompostas, simultâneas ou não.

Quando da apresentação da primeira versão projeto, em 2007, manifestei, em carta aberta divulgada em diversas publicações, posteriormente transformada em artigo e em capítulo de livro [2],  posição contrária à iniciativa. A contrariedade, no entanto, era restrita ao aspecto formal. Explico: talvez imbuído da paixão pelo Código Civil de 2002, decorrente da minha atuação direta no processo legislativo junto à ultima relatoria do projeto, tinha dificuldade em aceitar qualquer alteração relevante do Código, especialmente essa, que iria suprimir do regramento codificado toda uma disciplina jurídica. Defendia ser mais conveniente e  oportuno reformar o próprio Código Civil no lugar de começar do zero, tentando criar um código novo, e que todas as inovações do Estatuto poderiam, com muito mais facilidade, ser inseridas no Código Civil.

Portanto, em momento algum, me opus à necessidade de modernização do Direito de Família tal como proposto, no mérito, pelo PL nº 470/2013. Aliás, modernização que é imperativa, face às grandes transformações legislativas ocorridas na última década, tais como as Leis 11.698 (guarda compartilhada), 11.804 (alimentos gravídicos), 11.924 (acréscimo do sobrenome do padrasto ou madrasta), 12.010 (adoção) e a  Emenda Constitucional nº 66/2010

Passados os anos, e com o peso da experiência que transforma certezas em dúvidas, hesito, agora, sobre a correção da minha posição anterior. Como defendo em meu livro “Codificação, descodificação e recodificação do direito civil brasileiro”, a evolução do Direito é sempre marcada por movimentos cíclicos e alternados de concentração e de fragmentação ou dispersão das fontes. O desenvolvimento da sociedade, a causar o envelhecimento natural dos códigos, gera, em contrapartida, a necessidade de se regulamentar a lattere do código toda uma gama de novas questões. Esse processo de dispersão das fontes sempre se sucede ao processo de codificação.

O Direito de Família realmente possui institutos que o diferenciam, de forma muito peculiar, dos demais ramos, especialmente pela sua aderência direta e imediata às realidades da vida, que de tão diversificadas e mutáveis implicam a impossibilidade de o Código Civil albergar todas as demandas da família contemporânea. Sob esse aspecto, uma legislação unificada em forma de estatuto autônomo talvez venha a proporcionar uma hermenêutica mais harmônica dos princípios constitucionais e facilitar a sua concretização, tal como sustentado pelos elaboradores do projeto. Nos domínios da técnica legislativa, os estatutos são textos legais bastante semelhantes aos códigos, procurando disciplinar de modo completo e estanque uma determinada ordem de relações jurídicas. Implicam sempre na criação de direito novo, não tratando de condensar normas pré-existentes.

De qualquer forma, independentemente do aspecto formal da iniciativa legislativa, o fato é que o projeto, quanto ao seu conteúdo, representa notável avanço legislativo, à medida que incorpora no regramento positivado posições que atualmente só são acolhidas na jurisprudência, porém com considerável deficit na segurança jurídica. Isso porque a uniformização dessas questões só é obtida depois de muitos anos, quando decididas pelo Superior Tribunal de Justiça.

Algumas dessas inovações, entretanto, estão sendo mal compreendidas. Veja-se o caso, por exemplo, do reconhecimento de certos direitos às chamadas entidades familiares paralelas. Os críticos ao projeto sustentam a impossibilidade jurídica dos arranjos familiares simultâneos, a exemplo de uniões estáveis paralelas, ou nomeadamente a concomitância de união estável e casamento, produzirem quaisquer  efeitos jurídicos. Apegados ao dogma da família patriarcal, monogâmica e matrimonial, tais críticos esquecem as situações extraídas da realidade social e que vem sendo reconhecidas pela jurisprudência, tanto do Superior Tribunal de Justiça, como de diversos tribunais estaduais, cada vez mais pujante no amparo das multifárias manifestações familiares, mesmo porque não cabe ao Estado exercer qualquer tipo de controle sobre o comportamento das pessoas na seara  afetiva.

Cite-se, aqui, o julgamento do REsp 1.126.173/MG,  de 9 abril de 2013, onde o STJ,  para fins de aplicação da Lei nº 8.009/90, decidiu que o devedor, possuindo entidades familiares simultâneas e concomitantes, tem estendida a impenhorabilidade do bem de família a ambos os imóveis utilizados como residência pelas famílias paralelas .

No julgamento da Apelação Cível nº 70022775605, a 8ª Câmara Cível do TJRS reconheceu efeitos jurídicos também à união estável concomitante ao casamento não desfeito, com partilha de bens entre cônjuges e companheira.

No mesmo sentido, em demanda envolvendo uniões estáveis paralelas, colhe-se a seguinte manifestação em voto-vencedor da 5ª Câmara Cível do TJPE, na Apelação Cível nº 296.862-5:

 “No caso em análise, há que se atentar para o fato evidente de que, se o varão esteve no vértice de uma relação angular com duas mulheres, duas casas e duas proles, preenchendo em ambos os núcleos o papel de marido, de provedor e de pai, é que cultivava a compreensão pessoal de que podia integrar duas famílias, e, no seu íntimo, nutria a aberta intenção de fazê-lo.
(...)
Tais circunstâncias, se analisadas com a devida isenção de ânimo, demonstram o caráter familiar da união amorosa mantida pela autora-apelante, que em nada se assemelha às relações clandestinas e furtivas, de finalidade meramente libidinosa. Assim, configurando-se a formação de autênticos núcleos familiares simultâneos, não há razão jurídica para que se exclua um deles da tutela estatal, desmerecendo-o e relegando-o à plena desconsideração, ou, quando muito, à tutela do direito obrigacional.”

E antes que se deturpe o sentido desta minha manifestação, para transformá-la em uma espécie de ode à poligamia, ressalto o meu pleno convencimento da permanência do princípio monogâmico como um dos princípios basilares do nosso Direito de Família legislado, ao lado da afetividade, da busca da felicidade, da  isonomia de gênero e do melhor interesse da criança e do adolescente. Ocorre que todo e qualquer princípio está sujeito à colisão com outros princípios e até mesmo com outras regras, submetendo-se, portanto, a contínua e permanente operação de ponderação. A convivência dos princípios é sempre tensa, conflitual e, por isso, não pode o princípio da monogamia impedir o reconhecimento de determinados direitos, especialmente quando estiver em jogo o macro princípio da dignidade da pessoa humana. Os princípios colidentes coexistem, deixando de ser aplicados em um caso ou em outro, de acordo com o seu peso ou sua importância naquela situação concreta, mas permanecendo no ordenamento.

Da mesma forma que se reconhecem direitos ao casamento putativo, a despeito de  sua nulidade absoluta, em prol do princípio da boa fé, é de se reconhecer também juridicidade às uniões paralelas quando, através de uma operação de ponderação e sopesamento, se puder afastar o princípio monogâmico no caso concreto.

O que se verifica, como tendência jurisprudencial, portanto, é a proteção da família em seu sentido mais amplo, abrangendo, inclusive, a multiplicidade da entidade familiar, em hipóteses excepcionais.

Enfim, se o Projeto nº 470/2013 puder ser aperfeiçoado, o momento é este. E nesse sentido, o Instituto dos Advogados de São Paulo-IASP, através de sua Comissão de Estudos de Direito de Família e das Sucessões, estará, oportunamente, se debruçando sobre o texto.

Concorde-se ou não com a iniciativa da Senadora Lídice da Mata e do IBDFAM, não se pode lhe retirar o mérito de trazer luzes a um debate tão instigante quanto apaixonante, como só acontece com todas as questões de família.



[1] Diretor de Assuntos Legislativos do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Doutor em Direito Civil pela USP.
[2] DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação do direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 466-469.

Fonte: ibdfam